De 9 de fevereiro de 1622, sobre os frutos espirituais do jejum e as condições que tornam o jejum agradável a Deus: jejuar universalmente, isto é, com todos os sentidos e com o entendimento, a memória e os apetites da vontade; como os cristãos primitivos jejuavam completamente, jejuando por humildade e não por vaidade, jejuando por obediência e não por vontade própria, seguindo os costumes da comunidade em jejuar em vez de procurar ser singular, jejuando apenas para agradar a Deus e não para a estima dos homens e o mal de submeter os mandamentos de Deus e nossos superiores à nossa própria discrição humana.
Estes primeiros quatro dias do tempo santo da Quaresma servem de prefácio para indicar a preparação que devemos fazer para passar bem a Quaresma e nos dispormos a jejuar bem. Por isso pensei em falar-vos, nesta exortação, das condições que tornam o jejum bom e meritório. Falarei com a maior brevidade e familiaridade possı́vel, não só hoje, mas nos discursos que vos dirigirei todas as quintas-feiras desta Quaresma. Tudo será tão simples e adequado para seus corações quanto eu puder fazê-los.
Para tratar do jejum e do que é necessário para jejuar bem, devemos, de inı́cio, entender que o jejum por si só não é uma virtude. Os bons e os maus, assim como os cristãos e os pagãos, o observam. Os antigos filósofos o observaram e o recomendaram. Não eram virtuosos por isso, nem praticavam a virtude no jejum. Oh, não, o jejum só é uma virtude quando acompanhado de condições que o tornam agradável a Deus. Assim acontece que a uns beneficia e não a outros, porque não é realizado por todos da mesma maneira.
Encontramos algumas pessoas que pensam que para jejuar bem durante a época santa da Quaresma basta abster-se de comer alguns alimentos proibidos. Mas este pensamento é demasiado grosseiro para entrar no coração dos religiosos, pois é a vós que falo, assim como às pessoas dedicadas a Nosso Senhor. Sabemos muito bem que não basta jejuar exteriormente se não jejuarmos também interiormente e se não acompanharmos o jejum do corpo com o do espı́rito.
E por isso que nosso Divino Mestre, que instituiu o jejum, desejou muito em Seu Sermão da Montanha ensinar a Seus Apóstolos como deve ser praticado (Mt. 6, 16-18), que é uma questão de grande proveito e utilidade (pois não seria conveniente para a grandeza e majestade de Deus ensinar uma doutrina inútil. Isso não poderia ser). Ele sabia que para extrair força e eficácia do jejum, é necessário algo mais do que a abstinência de alimentos proibidos. Assim Ele os instruiu e, consequentemente, os dispôs a colher os frutos próprios do jejum. Entre muitos outros estão estes quatro: o jejum fortifica o espı́rito, mortiica a carne e sua sensualidade; eleva o espı́rito a Deus; combate a concupiscência e dá poder para vencer e amortecer suas paixões; em suma, dispõe o coração a procurar agradar somente a Deus com grande pureza de coração.
Será muito útil dizer claramente o que deve ser feito para bem fazer o jejum nestes quarenta dias. Pois, embora todos sejam obrigados a conhecê-lo e praticá-lo, os religiosos e as pessoas dedicadas a Nosso Senhor estão mais particularmente obrigados a isso. Agora, entre todas as condições exigidas para jejuar bem, selecionarei três principais e falarei familiarmente sobre elas.
A primeira condição é que devemos jejuar de todo o coração, isto é, de boa vontade, de todo o coração, universal e inteiramente. Se eu contar a você as palavras de São Bernardo sobre o jejum, você saberá não apenas por que ele é instituı́do, mas também como deve ser mantido.
Ele diz que o jejum foi instituı́do por Nosso Senhor como remédio para nossa boca, gourmetização e gula. Como o pecado entrou no mundo pela boca, a boca deve fazer penitência, sendo privada de alimentos proibidos e proibidos pela Igreja, abstendo-se deles pelo espaço de quarenta dias. Mas este glorioso santo acrescenta que, como não foi apenas nossa boca que pecou, mas também todos os nossos outros sentidos, nosso jejum deve ser geral e completo, ou seja, todos os membros do nosso corpo devem jejuar. Pois se ofendemos a Deus pelos olhos, pelos ouvidos, pela lı́ngua e por nossos outros sentidos, por que não devemos fazê-los jejuar também? E não apenas devemos tornar rápidos os sentidos do corpo, mas também as potências e paixões da alma – sim, até mesmo o entendimento, a memória e a vontade, pois pecamos tanto pelo corpo quanto pelo espı́rito.
Quantos pecados entraram na alma pelos olhos, como indica a Sagrada Escritura (cf. 1 Jo. 2, 16)? E por isso que eles devem jejuar mantendo-os abaixados e não permitindo que olhem para objetos frı́volos e ilegais; os ouvidos, ao privá-los de ouvir conversas vãs que servem apenas para encher a mente de imagens mundanas; a lı́ngua, não falando palavras vãs e que cheiram ao mundo ou às coisas do mundo. Devemos também eliminar os pensamentos inúteis, assim como as lembranças vãs e os apetites e desejos supérfluos de nossa vontade. Em suma, devemos controlar todas as coisas que nos impedem de amar ou cuidar do Bem Soberano. Desta forma, o jejum interior acompanha o jejum exterior.
E isso que a Igreja quer significar neste tempo santo da Quaresma, ensinando-nos a fazer rápidos os olhos, os ouvidos e a lı́ngua. Por isso ela omite todos os cantos harmoniosos para mortificar a audição; ela não diz mais Aleluia, e se veste completamente de cores sombrias e escuras. E neste primeiro dia ela se dirige a nós com estas palavras: Lembra-te, homem, que tu és pó, e ao pó voltarás (cf. Gn. 3, 19), como se quisesse dizer: “Oh, homem, abandone neste momento todas as alegrias e diversões, todas as reflexões alegres e agradáveis, e preencha sua memória com pensamentos amargos, duros e tristes. Dessa forma, você fará sua mente jejuar junto com seu corpo”.
Assim também nos ensinaram os cristãos da Igreja primitiva quando, para passar melhor a Quaresma, se privaram neste momento das conversas ordinárias com os amigos, e se retiraram para a grande solidão e para lugares afastados da comunicação com as pessoas. Pela mesma razão, os antigos Padres e os cristãos do ano 400 ou mais foram tão cuidadosos em passar bem esses quarenta dias que não se contentaram em abster-se de carnes proibidas, mas até mesmo de ovos, peixe, leite e manteiga, e vivia apenas de ervas e raı́zes. E não contentes em fazer seus corpos rápidos desta maneira, eles fizeram suas mentes e todos os poderes da alma também rápidos. Eles colocaram panos de saco em suas cabeças para aprender a manter os olhos baixos. Eles espargiram cinzas em suas cabeças em sinal de penitência. Retiraram-se para a solidão para mortificar a lı́ngua e a audição, não falando nem ouvindo nada vão e inútil. Naquela época eles praticavam grandes e austeras penitências pelas quais sujeitavam seu corpo e faziam todos os seus membros jejuarem. Eles fizeram tudo isso com total liberdade, nem forçados nem constrangidos. Observe como o jejum deles foi realizado de todo o coração e universalmente; pois eles entenderam muito bem que, como não só a boca pecou, mas também todos os outros sentidos de nossos corpos e poderes de nossa alma, as paixões e apetites estão cheios de iniqüidades. É, portanto, razoável que, para tornar nosso jejum completo e meritório, ele seja universal, ou seja, praticado tanto no corpo quanto no espı́rito. Esta é a primeira condição a ser observada para jejuar bem.
A segunda condição é nunca jejuar por vaidade, mas sempre por humildade. Se nosso jejum não for feito com humildade, não será agradável a Deus. Todos os nossos antigos Padres o declararam, mas particularmente Santo Tomás, Santo Ambrósio e o grande Santo Agostinho. São Paulo na epı́stola que ele escreveu aos Corı́ntios (cf. 1 Cor. 13), que foi lido no domingo passado, declarou as condições necessárias para nos dispormos a jejuar bem durante a Quaresma. Ele nos diz isso: a Quaresma se aproxima. Preparai-vos para jejuar com caridade, pois se o vosso jejum for feito sem ela, será vão e inútil, pois o jejum, como todas as outras boas obras, não agrada a Deus se não for feito na caridade e por caridade. Quando você se disciplina, quando faz longas orações, se não tem caridade, tudo isso não é nada. Mesmo que você deva fazer milagres, se você não tiver caridade, eles não o beneiciarão em nada. De fato, mesmo que você sofra o martı́rio sem caridade, seu martı́rio não vale nada e não seria meritório aos olhos da Divina Majestade. Pois todas as obras, pequenas ou grandes, por melhores que sejam em si mesmas, de nada valem e de nada nos aproveitam se não forem feitas na caridade e por meio da caridade.
Digo o mesmo agora: se o seu jejum for sem humildade, de nada valerá e não poderá agradar ao Senhor. Filósofos pagãos jejuaram assim, e seu jejum não foi aceito por Deus. Os pecadores jejuam dessa maneira, mas porque não têm humildade, não lhes serve de nada. Ora, segundo o Apóstolo, tudo o que se faz sem caridade não agrada a Deus; por isso digo da mesma forma, com este grande santo, que se você jejuar sem humildade, seu jejum não tem valor. Pois se você não tem humildade, você não tem caridade, e se você não tem caridade, você também não tem humildade. É quase impossı́vel ter caridade sem ser humilde e ser humilde sem ter caridade. Essas duas virtudes têm tanta afinidade uma com a outra que uma nunca pode existir sem a outra.1
Mas o que é jejuar por humildade? Nunca é jejuar por vaidade. Agora, como alguém pode jejuar por vaidade? De acordo com as Escrituras, existem centenas e centenas de maneiras, mas vou me contentar em lhe contar uma delas, pois não é necessário sobrecarregar sua memória com muitas coisas. Jejuar por vaidade é jejuar por vontade própria, pois essa vontade própria não é sem vaidade, ou pelo menos não sem a tentação da vaidade. E o que significa jejuar por vontade própria? E jejuar como se deseja e não como os outros desejam; jejuar da maneira que nos agrada, e não como somos ordenados ou aconselhados. Você encontrará alguns que desejam jejuar mais do que o necessário, e outros que não desejam jejuar tanto quanto o necessário. O que causa isso, exceto a vaidade e a vontade própria? Tudo o que procede de nós mesmos parece-nos melhor, e é muito mais agradável e fácil para nós do que o que nos é imposto por outro, ainda que este seja mais útil e adequado à nossa perfeição. Isso é natural para nós e nasce do grande amor que temos por nós mesmos.
Deixe cada um de nós examinar sua consciência e descobriremos que tudo o que vem de nós mesmos, de nosso próprio julgamento, escolha e eleição, é estimado e amado muito melhor do que o que vem de outro. Temos nele uma certa complacência que nos torna fáceis as coisas mais árduas e difı́ceis, e essa complacência é quase sempre vaidade. Você encontrará aqueles que desejam jejuar todos os sábados do ano, mas não durante a Quaresma2. Eles desejam jejuar em honra de Nossa Senhora e não em honra de Nosso Senhor. Como se Nosso Senhor e Nossa Senhora não considerassem a honra dada a um como dada ao outro, e como se honrando o Filho com jejuns feitos por sua intenção, não agradasse à Mãe, ou que honrando a Virgem não agradou ao Salvador! Que loucura! Mas veja como é humano: porque o jejum que essas pessoas se impõem no sábado em honra de nossa gloriosa Senhora vem de sua própria vontade e escolha, parece-lhes que deveria ser mais santo e que deveria levá-los a um perfeição muito maior do que o jejum da Quaresma, que é ordenado. Essas pessoas não jejuam como deveriam, mas como querem.
Há outros que desejam jejuar mais do que deveriam, e com estes se tem mais problemas do que com o primeiro grupo. Sobre este assunto o grande Apóstolo reclama (Rom. 14, 1-6), dizendo que nos encontramos diante de dois grupos de pessoas. Alguns não desejam jejuar tanto quanto deveriam e não podem se satisfazer com a comida permitida (é o que ainda hoje fazem muitas pessoas mundanas que alegam mil razões sobre esse assunto; mas não estou aqui para falar dessas coisas, pois é aos religiosos que me dirijo). Os outros, diz São Paulo, desejam jejuar mais do que o necessário. E com estes que temos mais problemas. Podemos mostrar fácil e claramente ao primeiro que eles transgridem a lei de Deus, e que ao não jejuar tanto quanto deveriam, enquanto podem fazê-lo, transgridem os mandamentos do Senhor. Mas temos mais dificuldade com os fracos e enfermos que não são fortes o suficiente para jejuar. Eles não ouvem a razão, nem podem ser persuadidos de que não estão vinculados a ela (a lei do jejum), e apesar de todas as nossas razões, insistem em jejuar mais do que o necessário, não querendo usar a comida que lhes pedimos. Essas pessoas não jejuam por humildade, mas por vaidade. Eles não reconhecem que, sendo fracos e enfermos, fariam muito mais por Deus não jejuando por ordem de outro e usando o alimento que lhes foi ordenado, do que desejando abster-se por vontade própria. Pois embora, por causa de sua fraqueza, sua boca não possa abster-se, eles devem fazer os outros sentidos do corpo rápidos, bem como as paixões e poderes da alma.
Você não deve, diz Nosso Senhor, parecer sombrio e melancólico como os hipócritas quando jejuam para serem louvados pelos homens e estimados como grandes abstêmios (cf. Mt. 6, 16-18)3. Mas que o seu jejum seja feito em segredo; portanto, lave o rosto, unja a cabeça, e seu Pai celestial, que vê o que está escondido em seu coração, o recompensará bem. Nosso Divino Mestre não quis dizer com isso que não devemos nos preocupar com a edificação do próximo. Oh, não, pois São Paulo diz (Tg. 4,5): Seja a vossa modéstia conhecida de todos. Aqueles que jejuam no tempo santo da Quaresma não devem escondê- lo, pois a Igreja ordena esse jejum e deseja que todos saibam que o estamos observando. Não devemos, portanto, negar isso àqueles que esperam de nós para sua edificação, pois somos obrigados a remover toda causa de escândalo para nossos irmãos. Mas quando Nosso Senhor disse: Jejue em segredo, Ele queria que entendêssemos: não faça isso para ser visto ou estimado pelas criaturas; não faças as tuas obras aos olhos dos homens. Cuida de edificá-los bem, mas não para que te considerem santo e virtuoso. Não seja como os hipócritas. Não tente parecer melhor do que os outros praticando mais jejuns e penitências do que eles.
O glorioso Santo Agostinho, na Regra que escreveu para seus religiosos (mais tarde adaptada para religiosos homens), ordena que se siga a comunidade tanto quanto possı́vel, como se quisesse dizer: Não seja mais virtuoso que os outros; não queiras praticar mais jejuns, mais austeridades, mais mortificações do que te são ordenados. Faça apenas o que os outros fazem e o que é ordenado por sua Regra, de acordo com o modo de vida que você segue, e se contente com isso. Pois, embora o jejum e outras penitências sejam boas e louváveis, contudo, se não forem praticados por aqueles com quem você convive, você se destacará e haverá alguma vaidade, ou pelo menos alguma tentação de se estimar acima dos outros. Como eles não fazem o que você faz, você experimenta alguma complacência vã, como se você fosse mais santo do que eles ao fazer essas coisas.
Siga a comunidade então em todas as coisas, disse o grande Santo Agostinho. Que os fortes e robustos comam o que lhes é ordenado, mantendo o jejum e as austeridades que estão marcadas, e que se contentem com isso. Que os fracos e enfermos recebam o que lhes é oferecido por sua enfermidade, sem querer fazer o que os robustos fazem. Que nenhum grupo se divirta olhando para ver o que este come e o que aquele não come, mas que cada um fique satisfeito com o que tem e com o que lhe é dado. Dessa forma, você evitará a vaidade e a particularidade.4
Que ninguém introduza aqui exemplos para provar que não há muito errado, afinal, em não seguir a vida comum. Não me diga, por exemplo, que São Paulo, o primeiro eremita, viveu noventa anos em uma gruta sem ouvir a Santa Missa e, portanto, em vez de ir ao Ofı́cio, devo permanecer aposentado e solitário em meu quarto para ter êxtases e arrebatamentos ali. Oh! não cite isso para mim, pois o que São Paulo fez foi feito por uma inspiração particular que Deus deseja que seja admirada, mas não imitada por todos. Deus o inspirou a ir a este retiro tão extraordinário para que os desertos fossem mais estimados, pois naquela época eram desabitados5. Mais tarde, eles foram habitados por muitos santos Padres. Não foi, porém, para que todos realmente seguissem o exemplo de São Paulo. Pelo contrário, era para que ele fosse um espelho e uma maravilha de virtudes, digno de ser admirado, mas não imitado por todos. Também não mencione o exemplo de São Simão Estilita. Ele permaneceu quarenta e quatro anos em uma coluna, fazendo duzentos atos de adoração todos os dias enquanto ajoelhava. Como São Paulo, ele agiu assim por uma inspiração muito especial. Deus quis mostrar nisso um milagre de santidade, como somos chamados e podemos levar neste mundo uma vida toda celestial e angelical.
Admiremos, pois, todas estas coisas, mas não me digas que seria melhor retirar-se à imitação destes grandes santos e não misturar-se com os outros ou fazer o que eles fazem, mas entregar-se a grandes penitências. Ah, não, diz Santo Agostinho, não pareça mais virtuoso que os outros. Contente-se em fazer o que eles fazem. Realize suas boas obras em segredo e não aos olhos dos outros. Não aja como a aranha, que representa o orgulhoso; mas imite a abelha, que é o sı́mbolo da alma humilde. A aranha tece sua teia onde todos podem vê-la, e nunca em segredo. Gira nos pomares, vai de árvore em árvore, nas casas, nas janelas, no chão, enfim, diante dos olhos de todos. Nisso se assemelha aos vaidosos e hipócritas que fazem de tudo para serem vistos e admirados pelos outros. Suas obras são, na verdade, apenas teias de aranha, próprias para serem lançadas no fogo do inferno. Mas as abelhas são mais sábias e prudentes, pois preparam o mel na colméia onde ninguém pode vê-las. Além disso, constroem pequenas celas onde continuam seu trabalho em segredo. Isso representa muito bem a alma humilde, que está sempre fechada em si mesma, sem buscar nenhuma glória ou louvor por suas ações. Em vez disso, ela mantém sua intenção oculta, contentando-se com o fato de Deus ver e saber o que ela faz.
Vou dar-lhe um exemplo disso, mas familiarmente, pois é assim que desejo lidar com você. Trata-se de São Pacômio, esse ilustre Pai dos religiosos, de quem tenho falado muitas vezes. Ele estava caminhando um dia com alguns daqueles bons padres do deserto, conversando sobre assuntos piedosos e devotos. Pois, veja você, esses grandes santos nunca falaram de coisas vãs e inúteis. Toda a conversa deles era sobre coisas boas. Agora, durante esta conferência, um dos religiosos, que havia feito duas esteiras em um dia, veio esticá-las ao sol na presença de todos esses Padres. Todos o viram, mas nenhum deles se perguntou por que ele fez isso, pois não estavam acostumados a se intrometer nas ações dos outros. Eles acreditavam que seu irmão fazia isso de forma bastante simples e, portanto, não tiraram nenhuma conclusão disso. Não censuravam a ação do outro. Não eram como aqueles que sempre peneiram as ações do vizinho, compondo livros, comentários e interpretações sobre tudo o que veem.
Esses bons religiosos nada se importaram, então, com aquele que estendeu suas duas esteiras. Mas São Pacômio, que era seu superior e a quem cabia unicamente o dever de examinar a intenção que o motivava, começou a considerar um pouco essa ação. E como Deus sempre dá Sua luz a quem O serve, Ele fez saber ao santo que este Irmão era conduzido por um espı́rito de vaidade e complacência sobre suas duas esteiras, e que ele havia feito isso para que ele e todos os Padres pudessem ver o quanto ele havia trabalhado naquele dia.
Veja, esses antigos religiosos ganhavam a vida com o trabalho de suas mãos. Eles eram empregados não no que desejavam ou gostavam, mas sim no que tinham sido ordenados. Exercitavam seus corpos pelo trabalho manual e suas mentes pela oração e meditação, juntando assim a ação à contemplação. Agora, sua ocupação mais comum era a tecelagem de esteiras. Todo mundo era obrigado a fazer uma por dia. O Irmão de que estamos falando, tendo feito duas delas, pensou por isso que era melhor que os outros. Por isso veio esticá-las ao sol diante de todos, para que o soubessem. Mas São Pacômio, que tinha o espı́rito de Deus, o fez jogá-las no fogo e pediu a todos os religiosos que rezassem por aquele que havia trabalhado para o inferno. Em seguida, mandou colocá-lo na prisão por cinco meses como penitência por sua culpa, para servir de exemplo aos outros e ensiná-los a desempenhar suas tarefas com humildade.
Não permitas que o teu jejum se assemelhe ao dos hipócritas, que têm rostos melancólicos e que consideram santos apenas os que estão emaciados. Que loucura! Como se a santidade consistisse em ser magra! Certamente Santo Tomás de Aquino não era magro; ele era muito forte. E ainda assim ele era santo. Da mesma forma, há muitos outros que, embora não sejam magros, não deixam de ser servos de Deus muito austeros e excelentes. Mas o mundo, que considera apenas o exterior, considera santos apenas aqueles que são pálidos e abatidos. Considere um pouco este espı́rito humano: ele leva em conta apenas as aparências e, sendo vaidoso, faz suas obras para ser visto pelos outros. Nosso Senhor lhe diz para não fazer como eles, mas para que seu jejum seja feito em segredo, apenas para os olhos de seu Pai celestial, e Ele o verá e o recompensará.
A terceira condição necessária para jejuar bem é olhar para Deus e fazer tudo para agradá-lo, retraindo-se dentro de nós à imitação de um grande santo, São Gregório Magno, que se retirou para um lugar secreto e afastado onde permaneceu por algum tempo sem que ninguém soubesse onde estava, contentando-se que o Senhor e Seus anjos o soubessem.
Embora todos devam procurar agradar somente a Deus, os religiosos e as pessoas que se dedicam a Ele devem ter um cuidado especial para fazê-lo, vendo somente a Ele, e estando certos de que somente Ele vê suas obras, contentando-se em esperar sua recompensa somente d’Ele. É isso que Cassiano, aquele grande Pai da vida espiritual, nos ensina tão bem no livro de suas admiráveis Conferências. (Muitos santos o tinham em tal estima que nunca iam para a cama sem ler um capı́tulo dele para recolher sua mente em Deus.) Ele diz: De que adianta fazer o que você está fazendo para os olhos das criaturas? Nada além de vaidade e complacência, que são boas apenas para o Inferno. Mas se você jejuar e fizer todas as suas obras para agradar somente a Deus, você trabalhará pela eternidade, sem se deliciar consigo mesmo ou se importar se você é visto pelos outros ou não, pois o que você faz não éfeito para eles, nem você espera sua recompensa deles. Devemos jejuar com humildade e verdade, e não com mentira e hipocrisia – isto é, devemos jejuar para Deus e para agradá-lo somente.
Não devemos fazer uso de muita discussão e discernimento para entender por que o jejum é ordenado, seja para todos ou apenas para alguns. Todos sabem que é ordenado em expiação pelo pecado de nosso primeiro pai, Adão, que pecou ao quebrar o jejum que lhe foi imposto pela proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento. Por isso, nossa boca deve fazer penitência, abstendo-se de alimentos proibidos. Muitos têm diiculdades neste assunto. Mas não estou aqui para me dirigir a eles, muito menos para dizer quem é obrigado a jejuar. Ah não! pois ninguém ignora que as crianças não são obrigadas a jejuar, nem as pessoas de sessenta anos de idade.
Continuemos e vejamos por meio de três exemplos quão perigoso é querer deliberar de todo tipo sobre os mandamentos de Deus ou de nossos superiores. Dois são extraı́dos da Sagrada Escritura e o outro da Vida de São Pacômio. A primeira é a de Adão, que recebeu de Deus o mandamento de não comer do fruto proibido sob pena de perder a própria vida. A serpente veio e aconselhou Eva a quebrar este mandamento. Ela o ouviu e prevaleceu sobre o marido. Eles discutiram a proibição que lhes foi feita, dizendo: “De fato! ainda que Deus nos tenha ameaçado de morte, certamente não morreremos, pois Ele não nos criou para morrer.” Eles comeram e morreram uma morte espiritual (Gn. 3, 1-6)6.
O segundo exemplo é o de alguns discı́pulos de Nosso Senhor que, quando O ouviram falar em dar-lhes Sua carne e Seu sangue como comida e bebida, escrutinaram e se perguntaram, e questionaram como alguém poderia comer a carne e beber o sangue de um homem . Mas como eles desejavam tanto deliberar sobre isso, nosso Divino Mestre os rejeitou (Jo. 6, 61-67).
O terceiro exemplo é tirado da Vida de São Pacômio. Ao sair um dia de seu mosteiro para algum caso que tinha na grande abadia de sua ordem, onde moravam três mil monges, recomendou que seus Irmãos cuidassem especialmente de vários jovens religiosos que o procuraram sob uma inspiração particular. A medida que a santidade desses padres do deserto se espalhava, crianças pobres vinham e imploravam ao santo para recebê-las nesta vida. Sabendo que foram enviados por Deus, ele os recebeu e deu-lhes um cuidado muito especial. E por isso que, quando ele estava saindo, recomendou muito cuidadosamente que eles se divertissem e comessem ervas cozidas. Pense em toda a atenção que foi dada a essas crianças! Mas uma vez que o santo padre se foi, os velhos religiosos, fingindo-se mais austeros, não quiseram mais comer ervas cozidas, mas contentaram-se em comer as cruas. Vendo isso, quem as preparou achou que seria perda de tempo cozinhá-las, pois ninguém as levava além dessas crianças.
Agora, quando São Pacômio voltou, eles saı́ram como abelhas correndo diante dele. Alguns beijaram sua mão e outros seu manto, dando as boas-vindas ao seu querido Pai. Finalmente, um jovem religioso veio e disse-lhe: “Oh, meu Pai, como eu ansiava pelo seu retorno, pois não comemos ervas cozidas desde que você partiu!”. Ao ouvir isso, São Pacômio ficou muito emocionado e chamou o cozinheiro. Perguntou-lhe por que não havia cozinhado as ervas. Este respondeu que era porque ninguém, exceto as crianças, as comeria, e que achava uma perda de tempo. Mas ele insistiu que também não havia descansado. Em vez disso, ele havia feito esteiras.
Ao ouvir isso, o santo Padre lhe deu uma boa correção na presença de todos. Então ele ordenou que todas as suas esteiras fossem lançadas no fogo, dizendo que era necessário queimar tudo o que foi feito sem obediência. “Pois”, acrescentou, “eu sabia bem o que era apropriado para essas crianças, que não deveriam ser tratadas como as mais velhas, e ainda assim você queria, contra a obediência, fazer esse tipo de deliberação.” E assim que aqueles que se esquecem das ordens e mandamentos de Deus e fazem suas próprias interpretações, ou que desejam raciocinar sobre as coisas ordenadas, se colocam em perigo de morte. Pois todo o seu trabalho, realizado de acordo com sua própria vontade ou critério humano, é digno do fogo.
Isso é tudo o que eu tinha a lhe dizer sobre o jejum e o que deve ser observado para jejuar bem. A primeira coisa é que seu jejum deve ser completo e universal, ou seja, que você deve fazer com que todos os membros de seu corpo e os poderes de sua alma jejuem: manter os olhos baixos, ou pelo menos mais baixos do que o normal; guardar melhor o silêncio, ou pelo menos guardá-lo mais pontualmente do que o normal; mortificar a audição e a língua, de modo que não mais ouça ou fale nada vão ou inútil; o entendimento, de modo a considerar apenas assuntos santos e piedosos; a memória, enchendo-a com a lembrança de coisas amargas e tristes e evitando pensamentos alegres e graciosos; manter sua vontade sob controle e seu espírito aos pés do crucifixo com algum pensamento santo e triste. Se fizer isso, seu jejum será universal, interior e exterior, pois você mortificará tanto o corpo quanto o espírito. A segunda condição é que você não observe seu jejum ou realize suas obras para os olhos dos outros. E a terceira é que você faça todas as suas ações e, conseqüentemente, seu jejum, para agradar somente a Deus, a quem seja honra e glória para todo o sempre.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espı́rito Santo. Amém.
Notas
- Cf. As Conferências Espirituais de São Francisco de Sales (Westminster , Md.: Newman Press, 1962), Conferência VIII, “Sobre a renúncia”, p. 136; Sermões de São Francisco de Sales sobre Nossa Senhora , Vol. II desta série (TAN Books, 1985), “A Anunciação”, 25 de março de 1621, p. 147. ↩
- Cf. São Francisco de Sales, Tratado sobre o Amor de Deus (Rockford, III.: TAN Books and Publishers, Inc., 1975), Livro X, cap. 9; Sermões sobre Nossa Senhora , “A Purificação”, 2 de fevereiro de 1622, p. 184. ↩
- Cf. pág. 2 deste sermão. ↩
- Cf. Conferências Espirituais I, pp. 12-13. ↩
- N. do T.: São Francisco de Sales fala das primeiras etapas da vida monástica, centrada no deserto, e das pessoas especiais que, por inspiração de Deus, foram instrumentos para estabelecer esta forma de vida religiosa. ↩
- Cf. Sermões sobre Nossa Senhora, “A Purificação”, 2 de fevereiro de 1622, pp. 179-181. ↩