Se um Papa herege pode ser depostoSe um Papa herege pode ser deposto

Extraído do livro de São Roberto Belarmino, Doutor da Igreja, Disputas sobre a Fé Cristã, vol. I, sobre o Sumo Pontífice, cap. XXX, onde desfaz-se o último argumento e trata da questão de se um Papa herege pode ser deposto

Décimo argumento. O Pontífice, em caso de heresia, pode ser julgado e deposto pela Igreja1. Portanto, o Pontífice está sujeito ao julgamento humano, ao menos em algum caso.

Respondo: Existem cinco opiniões sobre este assunto. A primeira é de Alberto Pighi2, que defende que o Papa não pode ser herege, e, portanto, não pode tampouco ser deposto em nenhum caso. Esta sentença é provável e pode ser facilmente defendida, como demonstraremos depois, em seu devido lugar. Contudo, uma vez que não se pode ter certeza a seu respeito, e que a opinião comum é a oposta, valerá a pena ver o que se pode responder à pergunta de se um Papa pode ser herege.

Assim, a segunda opinião é que o Papa, no momento em que cai em heresia, ainda que apenas interiormente, está fora da Igreja e foi deposto por Deus, razão pela qual pode ser julgado pela Igreja, isto é, pode ser declarado como deposto por direito divino, e ser de fato deposto, se ainda se recusar a ceder. Essa é a opinião de Juan de Torquemada3, mas para mim não é provável. Pois, embora a jurisdição seja dada ao Pontífice por Deus, contudo isso acontece com a cooperação de obras humanas, porque esse homem que antes não era Papa recebe de homens a condição de Papa. Portanto, essa condição não pode ser retirada por Deus senão por meio de um homem. Mas um herege oculto não pode ser julgado por um homem, e tampouco quer abandonar esse poder espontaneamente. Acresce que o fundamento dessa opinião é que os hereges ocultos estejam fora da Igreja, sentença cuja falsidade já demonstramos, prolixamente, no primeiro livro sobre a Igreja.

A terceira opinião está no outro extremo, a saber, que o Papa não foi nem pode ser deposto, seja por heresia oculta ou manifesta. Torquemada relata e refuta essa opinião4, e decerto se trata de algo muito improvável. Primeiro porque, conforme os cânones5 e o Papa Inocêncio6, um Papa herege pode ser julgado. E o que é mais, no Oitavo Sínodo7 recitam-se as atas do Concílio Romano sob Adriano, e nelas estava contida a informação de que o Papa Honório parecia ter sido anatematizado justamente, porque fora demonstrada a sua heresia, única causa pela qual é lícito que os menores julguem os maiores. Aqui cumpre notar que, apesar de ser provável que Honório não tenha sido de fato um herege, e que o Papa Adriano II, enganado por exemplares corrompidos do Sexto Sínodo, tenha pensado erroneamente que Honório fosse herege; contudo não podemos negar que Adriano, juntamente com o Concílio Romano e com todo o Oitavo Sínodo Geral, pensou que um Pontífice Romano pode ser julgado em causa de heresia. Acresce que a condição da Igreja seria misérrima se um lobo que manifestamente avança [contra as ovelhas] devesse ser reconhecido como Pastor.

A quarta opinião é de Caetano8, o qual ensina que um Papa manifestamente herege não está ipso facto deposto, mas pode e deve ser deposto pela Igreja. Essa sentença, em meu juízo, não pode ser defendida, sobretudo porque a autoridade e a razão provam que um herege manifesto está ipso facto deposto. A autoridade a que me refiro é a de São Paulo9, o qual ordena que um herege, depois de duas repreensões, isto é, depois que foi encontrado manifestamente contumaz, seja evitado. Jerônimo10 escreve que Paulo dá a entender que isso deve ser feito antes de qualquer excomunhão e sentença judicial, e diz que outros pecadores são excluídos da Igreja pela sentença de excomunhão, ao passo que os hereges se afastam e se amputam por si mesmos do corpo de Cristo. Mas um Papa que segue sendo Papa não pode ser evitado; como poderíamos evitar nossa própria cabeça? Como nos havemos de afastar do membro que está em conjunção conosco?

Por outro lado, a razão certíssima a que me refiro é a seguinte. Um não cristão não pode de modo algum ser Papa, como confessa Caetano11. O motivo é que, se algo não é membro, não pode tampouco ser cabeça; e não é membro da Igreja aquele que não é cristão; e um herege manifesto não é cristão, como Cipriano12, Atanásio13, Agostinho14, Jerônimo15 e outros ensinam abertamente. Portanto, um herege manifesto não pode ser Papa.

Caetano16 responde que um herege não é cristão simplesmente, contudo é cristão secundum quid. Pois duas coisas fazem um cristão: a fé e o caráter. Um herege, portanto, perdendo a fé, ainda está de algum modo ligado à Igreja, e é capaz de jurisdição. Portanto, trata-se ainda de um Papa, mas de um Papa que deve ser deposto, porque a heresia faz com que ele esteja disposto, por disposição última, a não ser Papa. Seria uma situação análoga à de um homem que, embora não esteja morto, contudo, está às portas da morte.

Mas pelo contrário. Sobretudo porque, se um herege ainda estivesse ligado à Igreja em ato17 por causa do caráter, então ele não poderia jamais ser cortado e separado dela atualmente, porque o caráter é indelével. Mas todos confessam ser possível que alguns podem ser de fato cortados da Igreja. Portanto, o caráter não faz com que um homem herege esteja atualmente na Igreja, mas apenas é um sinal de que ele esteve alguma vez na Igreja, e de que deveria estar nela. E uma situação análoga à de uma ovelha marcada. Quando ela erra pelos montes, o seu caráter não faz com que ela esteja no aprisco, mas apenas indica de que aprisco ela fugiu, ao qual ela pode ainda ser reconduzida. E isso é confirmado por Santo Tomás18, em cuja sentença aqueles que carecem de fé não estão unidos atualmente a Cristo, mas apenas potencialmente. Ele se refere à união interna, e não externa, que se faz pela confissão da fé e pelos sacramentos visíveis. Portanto, uma vez que o caráter diz respeito ao interior e não ao exterior, segundo Santo Tomás, o caráter somente não une um homem com Cristo em ato.

Depois, ou a fé é uma disposição simplesmente necessária para que alguém seja Papa, ou é uma disposição necessária apenas para sê-lo bem. No primeiro caso, uma vez eliminada essa disposição pela contrária, que é a heresia, o homem em questão logo deixa de ser Papa. No segundo caso, um Papa não pode ser deposto por causa de heresia, pois de outro modo ele deveria ser deposto até mesmo por causa de ignorância, improbidade e outras coisas semelhantes, que eliminam o conhecimento e a probidade, e outras disposições necessárias para ser um bom Papa. Ademais, Caetano19 confessa que o Papa não pode ser deposto pela falta das disposições não simplesmente necessárias para ser Papa, mas apenas das disposições para ser bom.

Caetano responde que a fé é uma disposição simplesmente necessária, mas parcial, não total. Portanto, removida a fé, o Papa ainda seguiria sendo Papa por causa da outra parte da disposição, que se chama caráter, e ainda permanece.

Mas pelo contrário. Ou a disposição total, que é o caráter e a fé, é simplesmente necessária, ou não, mas basta a parcial. No primeiro caso, uma vez removida a fé, a disposição simplesmente necessária não mais permanece, porque a disposição total era simplesmente necessária, e agora não é mais total. No segundo caso, não se requer a fé senão para ser bem, e, portanto, o Papa não pode ser deposto pela falta dessa condição. Além disso, as coisas que têm uma disposição última para a morte logo deixam de existir sem alguma força externa, como é evidente. Portanto, também um Papa herege, sem outra deposição, deixa de ser Papa por si mesmo.

Finalmente, os Santos Padres ensinam de comum acordo que os hereges não somente estão fora da Igreja, como também carecem, ipso facto, de qualquer jurisdição e dignidade eclesiástica. Cipriano:20 “Dizemos que absolutamente todos os hereges e cismáticos não possuem nenhum poder e direito.” E em outro lugar21, Cipriano ensina que os hereges que retornam à Igreja devem ser recebidos como leigos, ainda que antes fossem presbíteros ou bispos na Igreja. Santo Optato22 ensina que os hereges e cismáticos não podem ter as chaves do reino dos céus, nem desatar ou ligar. Vejam-se Ambrósio23 e Agostinho24. Jerônimo25 ensina o mesmo: “Não que possam ser bispos os que foram hereges, mas que constasse não terem sido hereges os que fossem recebidos”.

O Papa São Celestino I26 escreve: “Se alguém foi excomungado, ou despido da dignidade de bispo ou clérigo, pelo bispo Nestório ou pelos outros que o seguem, desde que começaram a pregar tais [heresias], é evidente que esse homem permaneceu e permanece em comunhão conosco. E não julgamos que ele tenha sido removido, porque a sentença daquele que já se oferecera ele próprio para ser removido não podia remover ninguém.” E em outro lugar:27 “A autoridade da nossa Sé sancionou que ninguém — seja bispo, clérigo ou cristão de alguma profissão – que tenha sido expulso do seu lugar ou da comunhão [da Igreja] por Nestório ou outros semelhantes, desde que começaram a pregar tais [heresias] – nenhum desses deve ser visto como expulso ou excomungado. Pois não podia expulsar ou remover ninguém aquele que, pregando tais coisas, vacilou.” São Nicolau I28 repete e confirma a mesma noção. Finalmente, também Santo Tomás29 ensina que os cismáticos logo perdem toda jurisdição, e são inválidas as ações que pretendem fazer por jurisdição.

E não é válido o que alguns respondem, a saber, que esses Padres falam apenas conforme os antigos direitos, ao passo que agora, por decreto do Concílio de Constância, não perdem a jurisdição a não ser os que foram nomeadamente excomungados, bem como os assassinos de clérigos. Isso, digo eu, não é válido, pois aqueles Padres, ao dizerem que os hereges perdem a jurisdição, não alegam direitos humanos, que naquela época talvez nem existissem, quanto a este assunto, mas apenas argumentam segundo a natureza da heresia. Ora, o Concílio de Constância não fala senão dos excomungados, isto é, daqueles que perderam a jurisdição por sentença da Igreja. Os hereges, porém, estão fora da Igreja, e privados de toda jurisdição, até mesmo antes da excomunhão. Com efeito, eles estão condenados pelo seu próprio juízo, como ensina o Apóstolo30; isso quer dizer que eles estão separados do corpo da Igreja sem a excomunhão, como expõe Jerônimo.

Depois, o que Caetano diz em segundo lugar, a saber, que um Papa herege pode ser deposto pela Igreja, verdadeiramente e com autoridade – isso não parece ser menos falso do que a primeira opinião. Pois, se a Igreja depõe um Papa contra a sua vontade, então ela certamente está acima do Papa, o que é exatamente o oposto do que o mesmo Caetano defende naquele tratado. Mas ele responde que a Igreja, ao depor o Papa, não tem autoridade sobre o Papa, mas somente sobre aquela conjunção da pessoa com o pontificado. Com efeito, assim como a Igreja pode unir o pontificado com tal pessoa, no entanto, não se diz que ela esteja, por esse motivo, acima do Pontífice; assim também ela pode separar o pontificado de tal pessoa em caso de heresia, e, no entanto, não se dirá que ela esteja acima do Pontífice.

Mas pelo contrário. Pois, primeiramente, deduzem eles que, porquanto o Papa depõe os bispos, o Papa deve estar acima de todos os bispos, e, no entanto, um Papa, ao depor um bispo, não destrói o episcopado, mas apenas o separa daquela pessoa. Em segundo lugar, ser deposto do pontificado contra a sua vontade é, sem dúvida, uma pena. Portanto, a Igreja, ao depor um Papa contra a sua vontade, sem dúvida o pune. Mas a faculdade de punir pertence a um superior e juiz. Em terceiro lugar, porque, segundo Caetano e os demais tomistas, o todo e as partes tomadas conjuntamente são realmente a mesma coisa. Portanto, aquele que possui autoridade sobre as partes tomadas conjuntamente, de modo a poder separá-las, tem-na também sobre o próprio todo que se origina daquelas partes.

E tampouco é válido o exemplo de Caetano sobre os eleitores, que, embora possuam o poder de aplicar o pontificado a certa pessoa, contudo, não têm poder sobre o Papa. Pois, enquanto se faz uma coisa, exerce-se uma ação sobre a matéria da coisa futura, e não sobre o composto, que ainda não existe31. Mas, quando a coisa é destruída, exerce-se uma ação em torno do composto, como é evidente nas coisas naturais. Assim, pois, os cardeais, ao criarem um Pontífice, exercem a sua autoridade não sobre o Pontífice, que ainda não existe, mas sobre a matéria, isto é, sobre a pessoa que, por meio da eleição, eles dispõem para o pontificado de algum modo, para que receba de Deus a forma do pontificado. Mas se depusessem o Pontífice, necessariamente exerceriam autoridade sobre o composto, isto é, sobre a pessoa pontifícia dotada de dignidade, isto é, sobre o Pontífice.

Portanto, a quinta opinião é a verdadeira, a saber, que um Papa manifestamente herege por si próprio deixa de ser Papa e cabeça, assim como por si próprio também deixa de ser cristão e membro do corpo da Igreja; razão pela qual ele pode ser julgado e punido pela Igreja. Esta é a sentença de todos os antigos Padres, os quais ensinam que os hereges manifestos logo perdem toda jurisdição. Nomeadamente, Cipriano32 ensina essa doutrina, dizendo o seguinte sobre Novaciano, que foi Papa (antipapa) no cisma durante o Pontificado de São Cornélio: “Ele não poderia deter o episcopado, ainda que, uma vez feito bispo, se afastasse do corpo dos seus co-epíscopos e da unidade da Igreja.” Aí Cipriano diz que Novaciano, ainda que houvesse sido um Papa verdadeiro e legítimo, contudo, cairia do pontificado ipso facto, caso se separasse da Igreja.

É idêntica à sentença dos mais doutos entre os autores mais recentes, como João Driedo33, o qual ensina que se separam da Igreja somente aqueles que ou são expulsos pela excomunhão, ou por si mesmos se afastam e se opõem à Igreja, como os hereges e cismáticos. E a sétima sentença diz que, naqueles que se afastaram da Igreja, não permanece absolutamente nenhum poder espiritual sobre aqueles que são da Igreja. Também Melchior Cano34 ensina que os hereges não são partes nem membros da Igreja, e diz35 que não é possível sequer imaginar em pensamento que alguém que não é membro nem parte seja cabeça e Papa. E também36 ensina, com palavras eloquentes, que os hereges ocultos ainda são da Igreja, e são partes e membros seus, e que até mesmo o Papa enquanto herege oculto pode continuar sendo Papa. Também os outros que citamos no livro 1, sobre a Igreja, têm a mesma opinião. 

O fundamento desta sentença é que um herege manifesto não é membro da Igreja de modo algum, isto é, nem em espírito, nem em corpo, ou seja, nem por união interna, nem por externa. Pois também os maus católicos estão unidos e são membros, em espírito pela fé, em corpo pela confissão da fé e pela participação dos sacramentos visíveis. Os hereges ocultos estão unidos e são membros somente pela união externa, assim como, reciprocamente, os bons catecúmenos são da Igreja apenas pela união interna, e não pela externa. Os hereges manifestos não são da Igreja de nenhum modo, como já foi provado.

Notas

  1. Ut patet dist. 40 can. Si Papa. 
  2. Lib. 4, cap. 8, Hierarchiae Ecclesiasticae 
  3. Lib. 4, cap. 20 
  4. Loco notato 
  5. Can. Si Papa, dist. 40 
  6. Serm. 2 de consecratione pontificis 
  7. Act. 7 
  8. In tract. de auctoritate papae et concilii, cap. 20 et 21 
  9. In epist. ad Titum, 3 
  10. ibidem 
  11. In eodem libro, cap. 26 
  12. Lib. 4, epist. 2 
  13. Serm. 2 contra Arianos 
  14. Lib. de gratia Christi, cap. 20 
  15. Contra Luciferianos 
  16. In Apologia pro tractatu praedicto, cap. 25, et in ipso tractatu, cap. 22 
  17. N. do E.: Ato no sentido aristotélico, em oposição à potência, capacidade para algo, pois o estar em ato denota, nesse caso, condição ou estado já existente, já realizado, de estar ligado à Igreja. Nesse mesmo sentido se entende o estar “atualmente”. 
  18. S.Theol., III, 8, 3 
  19. In tractatu praedicto, cap. 26 
  20. Lib. 2, epist. 6 
  21. Lib. 2, epist. 1 
  22. Lib. 1 contra Parmenianum 
  23. Lib. 1 de poenitentia, cap. 2 
  24. In Enchiridion, cap. 65 
  25. Lib. contra Luciferianos 
  26. In epist. ad Joannem Antiochenum, quae habetur in concilio ephesino, tomo I, cap. 19 
  27. In epist. ad clerum constantinopolitanum 
  28. In epist. ad Michaelem 
  29. S.Theol., II-II, 39, 3 
  30. Ad Titum, 3, 10-11 
  31. N. do T.: Trata-se do paradigma hilomórfico, isto é, da teoria da coexistência da forma (grego morphe) e da matéria (grego hyle) nos entes reais existentes no mundo. O composto, nesse caso, e o ente concreto dotado tanto de forma (que lhe confere a essência) como de matéria (que lhe confere a existência). O caso específico do ser humano, por exemplo, oferece um exemplo dos mais perspícuos para a compreensão da importância de ambos os polos da realidade, os princípios paternos e maternos de todas as substâncias. A separação entre a alma (forma) e o corpo (matéria) é precisamente o que chamamos de morte, isto é, a cessação da existência de um homem no plano temporal. De modo que a doutrina acerca da “ressurreição da carne” é um dos pilares que sustentam a esperança cristã, porque nos permite crer na “recuperação” de nosso composto, de nosso ser integral, na eternidade, depois da perda definitiva da matéria perecível que nos conferia a existência. 
  32. Lib. 4, epist. 2 
  33. Lib. 4 de Scripturis et dogmatibus Ecclesiasticis, cap. 2, par. 2, sent. 2 
  34. Lib. 4 de locis, cap. 2 
  35. Cap. ultimo ad argumentum 12 
  36. Ibidem