O que é a pertinácia e sobre os vinte modos pelos quais se presume que alguém erre pertinazmente contra a fé

Extraído de sua Summa de Ecclesia, publicada sob ordem do Papa Eugênio IV1

Visto que a pertinácia no erro, como dissemos, é o que maximamente constitui alguém como herege, julgamos útil descrever o que é a pertinácia, assinalar os modos pelos quais os católicos devem considerar alguém que erra contra a fé como pertinaz e de que modo alguém pode em juízo ser convencido da pertinácia (alheia).

Acerca do primeiro (do que é a pertinácia), deve-se notar o que Santo Tomás deduz na (Suma Teológica) II-II, q. 138, a. 2, declarando de que modo a pertinácia e a moleza se contrapõem à perseverança. Pertinaz, como diz Santo Isidoro no livro das Etymologiae, é chamado aquele que é impudente [impudens], quase como que tenaz [tenax] em tudo, e aqui o mesmo é chamado pertinaz porque em seu propósito persevera até à vitória, porquanto os antigos diziam Nacia ao que nós chamamos vitória, e o filósofo, no sétimo livro das Etymologiae, chama a estes de Ichyriomones, isto é, de sentença forte [fortis sententiae], ou Idionomones, isto é, de sentença própria [propriae sententiae], porque perseveram na própria sentença mais do que é oportuno, enquanto o mole menos do que é oportuno. Por isso o perseverante é louvado por estar no meio, mas o pertinaz é repreendido como estando no excesso do meio, e o mole no defeito, isso o diz Santo Tomás. A partir disso, primeiro se considera que a pertinácia é sempre um vício e é tomada em mau sentido, donde Túlio, em sua Rhetorica, diz que a pertinácia está para a perseverança assim como a superstição está para a religião. Papias também assinala a diferença entre a perseverança e a pertinácia, e diz que a perseverança está na virtude, enquanto a pertinácia está no vício. Depois, em nosso propósito, considera-se que a pertinácia poderia ser assim descrita: a pertinácia é uma impudente persistência no próprio erro [Pertinacia est impudens persistentia in proprio errore]. Outros, porém, definem o pertinaz assim: pertinaz é aquele que persiste naquilo que por necessidade deve abandonar, a saber, o erro ou a dúvida; acerca do segundo (dúvida), deve-se notar que vários modos são postos por alguns doutores e por Ockham em seu diálogo.

O primeiro modo, porém, pelo qual se pode compreender a pertinácia é se alguém, por atitude ou por palavra [si facto vel verbo], demonstra não crer firmemente que a fé cristã é verdadeira e sã, por exemplo, se disser que a fé cristã é falsa ou dúbia, ou se alguém converte a uma seita, como a dos judeus ou dos sarracenos, pois de tal pessoa é lícito a qualquer um julgar que erra pertinazmente.

O segundo modo é se alguém diz que alguma parte do Novo ou do Velho Testamento afirma algo falso, ou que não deve ser recebida, pois qualquer um que seja assim é um pertinaz a ser julgado como herege, a não ser que porventura seja tão simples [simplex] que não saiba o que se entende por Novo e Velho Testamento, e, seduzido por outros, diga que o Novo ou o Velho Testamento, ou parte (deles), não deve ser recebido, conquanto creia firmemente que toda (o resto da) fé da Igreja deve ser recebido.

O terceiro modo é se alguém crê ou sustenta que a Igreja universal erra ou errou.

O quarto modo é se algum cristão, capaz de razão, nega qualquer verdade católica que entre todos os fiéis católicos com quem conviveu é divulgada como católica e pelos pregadores da palavra de Deus é publicamente pregada, como esta: que Cristo foi crucificado, e outras semelhantes.

O quinto modo é se alguém nega que alguma asserção numa determinação da Igreja esteja contida na escritura divina.

O sexto modo é se alguém conscientemente nega a doutrina dos Santos [doctrinam sanctorum].

O sétimo modo é se alguém, sendo corrigido legitimamente e tendo sido mostrado que o seu erro se opõe à verdade católica, não se corrige nem emenda a sua heresia, revogando-a. Isso claramente se conclui das palavras de S. Agostinho no capítulo “Qui in ecclesia”, 24, q. 3.

O oitavo modo é se alguém se esforça por atrair outros para defender pertinazmente o seu erro, com preceitos, cominações, penas, promessas, juramentos ou de qualquer outro modo de atrair. Pois, como disse o Papa Leão (no livro) Extra, sobre a heresia, cap. “Qui alios”, sendo evidente que aquele que, podendo, não retira os outros do erro, denuncia a si mesmo como errante, muito mais (evidente) é que aquele que compele outros a defender pertinazmente a heresia, ou a aderir pertinazmente à heresia, deve ser julgado herege pertinaz.

O nono modo é se alguém compele – por meio de penas, ameaças ou preceitos – outro a abjurar alguma verdade católica ou a negar a verdade católica. É evidente pelo que precede.

O décimo modo é quando se descobre que alguém abjurou a verdade católica ou jura que observará para sempre, como se fosse católica, qualquer asserção que, em realidade, é herética.

O décimo primeiro é se alguém impede aqueles que defendem ou pregam a verdade católica ou impede aqueles que combatem uma “verdade” herética [vel veritatem haereticam impugnantes].

O décimo segundo é se alguém, errando contra a fé católica, recusa-se a submeter-se à correção e emenda daquele ou daqueles que deve estar sujeito.

O décimo terceiro modo é se alguém, repreendido por peritos [a peritis] sobre algum erro contra a fé, recusa-se a ser informado sobre a verdade.

O décimo quarto modo é se alguém, por palavra ou por atitude [verbis vel factis], protesta que de modo algum voltará atrás de [revocaturum] sua asserção herética. É evidente, pois tal pessoa não está preparada para ser corrigida e, por conseguinte, deve ser considerada pertinaz.

O décimo quinto modo é se alguém, em favor da praxe herética, proíbe que se leiam as Escrituras católicas, ou que se preguem ou publiquem as verdades católicas. É evidente, pois tal pessoa é um defensor manifesto da praxe herética e um ofensor da verdade católica.

O décimo sexto modo é se alguém, em defesa da praxe herética, inventa novos erros e os defende. É evidente, pois tal pessoa não está preparada para ser corrigida nem busca a verdade com cautelosa solicitude. Logo, deve ser considerada pertinaz.

O décimo sétimo modo é se alguém, especialmente o papa [specialiter papam], na praxe herética define solenemente um erro [errorem diffinit solenniter]2 e afirma aos cristãos que deve ser tido como católico. É evidente, pois uma tal pessoa, constrangendo outros a defenderem pertinazmente o erro, deve ser reputado pertinaz.

O décimo oitavo modo é se alguém consente de fato com a supracitada definição de praxe herética, aconselhando, cooperando, induzindo ou afirmando que assim deve ser definido. É evidente, pois os que fazem e os que consentem, segundo os cânones, são sujeitos à mesma pena.

O décimo nono modo é se alguém, inferior ao Sumo Pontífice, determina por sentença definitiva que alguma asserção herética deve ser mantida, ordenando a outros e impondo que a sintam e a reputem como católica, pois quem quer que tenha consentido com tal determinação parece dever ser considerado pertinaz e herege, como é evidente pelo que foi dito anteriormente.

O vigésimo modo é se alguém, tendo o poder, não resiste à praxe herética. É evidente por aquilo [dito por] Jerônimo no capítulo Error, dist. 83: O erro ao qual não se resiste é aprovado”. Aquele, porém, que não resiste ao erro, parece dever ser julgado pertinaz, Logo, aquele que ao erro não resiste quando pode, deve ser considerado pertinaz. Igualmente, o Papa Leão, em Extra, sobre os hereges, capítulo Qui alios, diz: Aquele que, podendo, não retira os outros do erro, demonstra que ele mesmo erra; e no capítulo Facientis, dist. 86, diz o Papa João: Aquele que podendo corrigir (outro) tem, sem dúvida, a culpa daquele que negligencia emendar.

Ademais, acerca disto se deve advertir que a pertinácia não deve ser julgada somente pelo ato exterior, como, por exemplo, que seja reputado pertinaz apenas aquele que por palavras ou escritos ou ações resistiu à verdade católica de algum dos modos já expostos, mas também parece contumaz contra a verdade católica aberta e pregada aquele que na Igreja persistiu longamente no erro, latente ou até à morte. Pois tal pessoa, tendo conhecimento de que tal erro foi condenado pela Igreja, não pode ser desculpada pela ignorância, visto que parece persistir no erro mais por malícia obstinada [cum magis per obstinatam malitiam persistere in errore videatur]. E por isso a Igreja presume, julga e pune, como hereges, àquele que, contra a verdade católica, (ela) encontra tendo perseverado no erro até à morte.

Notas

  1. PDF disponível em:
    https://www.google.com.br/books/edition/Summa_de_Ecclesia/vwXO-8kA4qMC?hl=pt-BR&gbpv=1&dq=pertinax&pg=RA1-PA387-IA1&printsec=frontcover 
  2. N. do T.: Não deve-se pensar que o Cardeal Torquemada se refere a uma definição solene do Papa seja no exercício de seu ofício papal, pois, deste modo, o Papa não erra ensinando ex officio, mas trata-se do Papa exercendo seu magistério privado, de modo que “solene” se refira à notoriedade ou publicidade do ato, conforme explicado em nosso artigo sobre o papa herege, onde expusemos a opinião do Cardeal Torquemada: https://www.zelanti.net/posts/um-herege-publico-deixa-de-ser-papa-e-e-deposto-do-papado