Confiança em Deus

Extraído do livro Tesouros de Cornélio a Lápide, organizada pelo Abade Barbier, a partir dos célebres comentários de Cornélio a Lápide às Sagradas Escrituras1

Fundamentos da confiança em Deus

Perguntais, diz São Bernardo, de que modo podeis saber se Deus vos perdoou? Vós o sabereis recordando a cura do paralítico: o Senhor disse-lhe: Levanta-te, toma teu leito e anda: Dicit ei Jesus: Surge, tolle grabatum tuum, et ambula (Jo 5, 8).

Deus perdoou-vos:

1.° Se vos levantais plenos de desejo das coisas celestiais;
2.° Se levais vosso leito, isto é, vosso corpo, se o subtrais ao império dos sentidos e das loucuras da terra, de modo que vossa alma não esteja sujeita às concupiscências dele; mas que ela, como é justo e necessário, governe o corpo e conduza-o até onde ele não queira ir; e
3.° enfim, se caminhais esquecendo o que deixais para trás, e avançando até o Céu que está diante de vós.

Desde o momento que tenhais o desejo e o bom propósito de avançar, não duvideis de vossa cura. Mediante este desejo, assim que vos levantardes, já vossa carga será leve, já levareis vosso leito e andareis desembaraçados do peso do pecado. Sem embargo, não separeis o temor da confiança, nem a confiança do temor (De quatuor orandi modis).

Não é culpável aquele que experimenta tentações ou os ataques da concupiscência; mas, sim, aquele que neles consente, diz Santo Agostinho: Qui consentit, non qui sentit, inducitur in tentationem (Lib. V, contr. Julian).

Sentir não corrompe, diz São Bernardo, porém, sim, o consentir; e há mais: o cansaço que experimentar aquele que resiste às suas paixões converte-se em coroa do vencedor: Non nocet sensos ubi non est consensus; imo quod resistentem fatigat, vincentem coronat (Serm. in Cant.).

Quando poderemos estar seguros de que Deus perdoou-nos?, pergunta São Basílio. Quando tenhamos os sentimentos daquele que diz: Abandonei a iniquidade e a detestei (Sl 118, 163). Quando certo persuasus esse aliquis potest Deum sibi peccata remississe? Nempe, si affectionem animi in se animadverterit simulem illius qui dixit: Iniquitatem ódio habui, et abominatus sum (In Disput., Reg. CCXVI).

OS MOTIVOS DE CONFIANÇA SÃO FUNDADOS…

1.° No auxílio de Deus

Deus, diz Santo Agostinho, não manda o impossível; senão que, ao dar preceitos, adverte que se faça o que se possa fazer, e que se peça auxílio naquilo que não se possa; então, Ele dá força para operar: Deus impossibilita non jubet; sed jubendo monet, et facere quodpossis, et petere quod non possis, et adjuvat utpossis (Lib. de natura et gratia, c. XLIII).

Aquele que ordena o combate ajuda também a combater. Deus não contempla a luta que empreendeis como o povo contempla o combate do atleta; o atleta não recebe do povo mais que gritos ou aplausos, porém, jamais auxílios; o povo prepara-lhe uma coroa, porém não lhe dá a força de conquistá-la. Deus, ao contrário, inclina seus olhares sobre os combatentes que o invocam, e ajuda-lhes a alcançar a vitória. Prestai atenção à voz de um grande atleta, o Rei Profeta: Quando eu dizia ‘Meu pé vai resvalar’, vossa misericórdia, Senhor, acudia a sustentar-me: Si dicebam: Motus est pes meus; misericórdia tua, Domine, adjuvabat me (Sl 93, 18).

Escutai a outro atleta incomparável, que se chama São Paulo: Vemo-nos assediados por toda sorte de tribulações, porém, nem por isso perdemos o ânimo; encontramo-nos em grandes apuros, mas não desesperados ou sem recursos; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, não inteiramente perdidos2.

Deus é fiel, e não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças; aliás, Ele fará com que a tentação vos seja proveitosa, para que vos possais sustentar3.

Meu jugo é suave e minha carga é leve, diz Jesus Cristo: Jugum meum suave est, et onus meum leve (Mt 11, 30). Os mandamentos de Deus não são pesados, diz o Apóstolo São João: Mandata ejus gravia non sunt (1 Jo 5, 3).

Tudo posso Naquele que me conforta, diz São Paulo: Omnia possum in eo qui me confortat (Fl 4, 13). Em minha primeira defesa, – escreve o grande Apóstolo a seu discípulo Timóteo – ninguém me assistiu; pelo contrário, todos me desampararam… Porém, o Senhor me assistiu e alentou4). O mesmo Deus diz: Eu não vos deixarei, nem vos abandonarei. De maneira que nós podemos repetir com confiança: O Senhor é minha ajuda, não temerei aquilo que os homens possam fazer contra mim5.

Descarregai todas as vossas inquietudes no seio de Deus, diz o Apóstolo São Pedro, porque Ele mesmo cuidará de vós: Omenm sollicitudinem vestram projicientes in eum; quoniam ipsi cura est de vobis (1 Pd 5, 7).

Tu viste quão grandes tem sido as perseguições que tive que sofrer, diz São Paulo a Timóteo, e como o Senhor me livrou de todas elas: Quales persecutiones sustinui, et ex omnibus eripuit me Dominus (2 Tm 3, 11).

O Senhor fez-se o amparo do pobre, diz o Salmista, socorrendo-o oportunamente na tribulação; confiem, pois, em Ti, ó Deus meu, esperem em Ti, Senhor, aqueles que conhecem teu Nome, porque jamais desamparaste, Senhor, aos que a Ti recorrem6. Eu contemplava sempre ao Senhor diante de mim como quem está à minha destra para sustentar-me7. A misericórdia servirá de muralha aquele que põe a sua confiança no Senhor: Esperantem autem in Domino misericórdia circundabit (Sl 31, 10).

A salvação dos justos vem do Senhor, e é Ele seu protetor no tempo da tribulação; o Senhor os ajudará e os livrará; e os subtrairei das mãos dos pecadores, e os salvará, porque puseram sua confiança Nele (Sl 36, 39-40). Libertaste-me, Senhor, de todas as tribulações: Ex omni tribulatione erupuisti me (Sl 53, 9). Se eu me encontrar, ó Senhor, no meio da tribulação, Vós me animareis, porque estendeis vossa mão contra o furor de meus inimigos, e me salvou vossa poderosa destra (Sl 137, 8).

Não temas, Abraão, disse o Senhor; Eu sou teu protetor, e tua recompensa demasiadamente grande: Noli timere, Abraham, ego protector tuus sum, et mercês tua magna nimis (Gn 15, 1).

Ponde constantemente a vossa confiança em Deus, diz Santo Agostinho, e confiai-lhe tudo o que tendes; porque Ele não deixará de levantar-vos até Si, e não permitirá que vos suceda mais do que vos pode ser útil, mesmos sem o saberdes8. Não trateis de pertencer-vos e de serdes senhores de si mesmos, diz o mesmo Doutor; tende, pelo contrário, em muita honra, o fato de serdes servos do Deus clementíssimo e onipotente. Imitemos ao servidor fiel que não vê nem ouve nada além das ordens de seu amo. Que nossos olhos, nossos ouvidos e nossos corações somente a Ele vejam, somente a Ele ouçam, e somente a Ele sintam: estejamos sentados sobre a rocha inabalável da confiança (Lib. I Soliloq.).

Eu, diz o profeta Miqueias, fixarei os meus olhos no Senhor, porei minha esperança em Deus, Salvador meu; e, então, meu Deus me atenderá9.

Lançai sobre o colo do Senhor vossas ansiedades, e Ele sustentar-vos-á: não deixará ao justo em agitação perpétua (Sl 54, 43). Vossa misericórdia, Senhor, seguir-me-á todos os dias de minha vida (Sl 22, 6). O Senhor é minha luz e minha salvação: a quem hei de temer? O Senhor é o protetor de minha vida: perante quem eu tremerei?10 Se Deus é por nós, diz o grande Apóstolo, quem será contra nós? Si Deus pro nobis, qui contra nos? (Rm 8, 31).

Com o auxílio de Deus, todos os esforços de nossos inimigos convertem-se para nós em bem, recompensas e coroas.

2.º Motivos de confiança fundados nos socorros e méritos de Jesus Cristo

Ó Deus protetor nosso, exclama o Real Profeta, olhai e vede a face de vosso Cristo: Protector noster, aspice, Deus, et respice in faciem Christi tui (Sl 83, 10).

Meus filhinhos, diz São João, estas coisas vos tenho escrito, a fim de que não pequeis. Porém, ainda quando alguém por desgraça pecar, não desespere, pois temos por advogado diante do Pai a Jesus Cristo, Justo e Santo: e Ele mesmo é a vitima de propiciação por nossos pecados; e não somente pelos nossos, senão também pelos do mundo inteiro: Si quis peccaverit, advocatum habemus apud Patrem, Jesum Christum justum: et ipse estpropitiatio pro peccatis nostris; non pro nostris autem tantum, sed etiam pro totius mundi (2 Jo 2, 1-2).

Jesus Cristo é nosso advogado, nosso patrono, nosso mediador, nosso intercessor e nossa vítima; Ele mesmo apresenta-se para ser nossa garantia; oferece a seu Pai suas chagas, seus méritos, sua paixão, seu sangue e sua morte. Por isto, até depois de sua ressurreição, conservou suas chagas, e as levou ao Céu para apresentá-las constantemente a seu Pai, e para alcançar-nos com elas o perdão, a graça e a glória.

Quem é aquele que virá julgar-vos, pergunta Santo Agostinho, senão Aquele que deixou-se julgar e condenar por vós? De certo modo, quis sofrer a sentença que vos esperava, e deixou-se condenar para absolver-vos (In Soliloq.).

Ouvi a São João Crisóstomo: Se sois ímpios, pensai no publicano; se sois impuros, pensai na mulher adúltera; se sois homicidas, pensai no bom ladrão; se sois criminosos, pensai no blasfemo; considerai a Paulo, que, de grande perseguidor, converte-se no maior pregador do Evangelho.

Porém, dir-me-eis: eu posso obter o perdão? Sou blasfemo, ímpio, libertino. Vem-se todos esses crimes nos grandes pecadores que vos precederam. Elegei o posto que vos agrade, e refugiai-vos nele.

Quereis exemplos do Novo Testamento? Quereis outros do Antigo? No Antigo, olhai a Davi, etc.; no Novo, olhai a Paulo etc. E, além do mais, o que é o pecado e todos os pecados do mundo ao lado da misericórdia de Deus? Uma teia de aranha que não pode resistir ao sopro do vento: Qui est peccatum ad Dei misericordiam? Tela aranae, quae vento flante nusquam comparet (Homil. II, in Psalm. L).

Se Saulo é um santo tão grande, porque eu hei de desesperar?, diz Santo Anselmo: Si Saulus sanctus est, ego quare despero? (Lib. de Similit.).

O Pontífice que temos, diz São Paulo aos Hebreus, não é tal que seja incapaz de compadecer-se de nossas misérias, havendo voluntariamente experimentado todas as tentações e debilidades, à exceção do pecado, por razão da semelhança conosco no ser homem. Aproxime-nos, pois, confiadamente, ao trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e achar o auxílio da graça para sermos socorridos no tempo oportuno (Hb 4, 15-16).

Jesus Cristo pode salvar perpetuamente aqueles que se aproximam de Deus por sua mediação; visto que está sempre vivo para interceder por nós: Salvare in perpetuum potest accedens per semetipsum ad Deum; semper vivens ad interpellandum pro nobis (Hb 7, 25).

Jesus Cristo não entrou no santuário feito por mãos de homens (tal como era o da Lei antiga), que era figura do verdadeiro; senão que entrou no próprio Céu para apresentar-Se agora por nós, em reverência a Deus (Hb 9, 24).

Tendo a firme esperança de entrar no Sancta Sanctorum ou Santuário do Céu, pelo Sangue de Cristo… mantenhamos inabalável a esperança que temos confessado: Habentes fiduciam in introito Sanctorum in Sanguine Christi etc (Hb 10, 19).

3.º Motivos de confiança fundada em outros auxílios

Além da bondade e dos auxílios de Deus, e da proteção e dos méritos de Jesus Cristo, que não dão a esperança de obter o perdão de nossos pecados e nossa salvação, temos, todavia, para maior segurança nossa, a Palavra de Deus, a graça, os Sacramentos, a Santíssima Virgem, os Santos, a Oração, etc.

Estimai o Senhor, diz a Sabedoria, e buscai-O com simplicidade de coração, porque aqueles que não O tentam encontram-No, e manifesta-Se àqueles que Nele tem confiança (Sb 1, 1-2).

Excelência da confiança em Deus: maravilhas que produz

Próximo de Vós, Senhor, somente a confiança obtém misericórdia, diz São Bernardo; não derramais o azeite da misericórdia a não ser no vaso da confiança: Sola spes apud te miserationis obtinet locum; nec oleum misericordiar, nisi in vase fiduciae, ponis (Serm. III, de Annunt.).

Aquele que põe sua confiança em Mim, diz o Senhor por meio de Isaías, herdará a terra e possuirá meu santo monte: Qui fiduciam habet mei, haereditabit terram, et possidebit montem sanctum meum (Is 62, 13).

Bem-aventurado o homem que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor, diz Jeremias: Benedictus vir qui confidit in Domino, et erit Dominus fidúcia ejus (Jer 17, 7). Será como a árvore transplantada junto às correntes de águas que estende até à umidade as suas raízes; não temerá os ardores do estio; suas ramas estarão sempre verdes, nem lhe fará mal a seca, e nunca deixará de dar frutos (Sl 17, 8). Deus, notai bem, diz que todo aquele que tem confiança Nele é bendito; porque a confiança honra infinitamente a Deus.

Com efeito: aquele que confia em Deus e se lança em seu seio, como uma criança no regaço de uma boa e terna mãe, publica altamente que Deus é muito bom, que obterá auxílio em suas necessidade, e que O achará fiel; não enganando jamais aos que Lhe entregam sua confiança.

Abraão confiou contra toda a esperança, e, por isto, Deus lhe deu, como um milagre, uma posteridade numerosa; e cumulou-lhe de bênçãos; e, sobretudo, a incomparável e inefável benção de fazer saírem de sua linhagem a Jesus Cristo e a Santíssima Virgem.

Aquele que não tem confiança em Deus é, pelo contrário, réu de uma grave injustiça, porque nega a Providência, isto é, pretende que Deus não quer, não pode e não sabe socorrer.

Aquele homem que põe toda a sua confiança em Deus extrai, dessa mesma confiança, o auxílio e a graça para sobrepor-se a todas as dificuldades e tentações. Aquele que confia em Deus extrai Dele uma virtude sólida e todos os bens. Parece- se ao loureiro. O raio, diz Plínio, fere a tudo o que encontre na terra, menos ao loureiro: uma grande calamidade pode derrubar, romper, destruí-lo todo, menos a firme confiança em Deus. A confiança em Deus é uma virtude forte, sempre verde e louçã, sempre formosa. Como o loureiro, não se seca nem se consome pelos ventos abrasadores, pelas provas, nem as tribulações. Assim como o loureiro é o emblema da vitória, a confiança em Deus é também presságio certo de vitória sobre todos os inimigos que o Inferno, o mundo e a carne armam contra o homem.

Nascemos, em verdade, filhos da ira; porém, enxertados em Jesus Cristo, pela confiança em Deus e pelo amor que nos tem, convertemo-nos em árvores carregadas de frutos de bênçãos.

Daniel foi lançado à cova dos leões: os leões respeitaram-no, e ele saiu dali sem haver recebido ferida alguma. De onde proveio este milagre? Proveio de que Daniel tinha posto sua confiança em Deus: Eductusque est Daniel de lacu, et nulla loesio inventa est in eo, quia credidit Deo suo (Dn 6, 23).

A casta Susana foi injustamente acusada de um crime infame: condenaram- na à morte, e logo foi conduzida ao lugar do suplício. Porém, com os olhos cheios de lágrimas, ela olhava o Céu; porque seu coração estava pleno de confiança em Deus: Flens suspexit ad coelum; erat enim cor ejus fiduciam habens in Domino (Dn 13, 35). Deus a abandonará? Não. Deus fez um milagre em seu favor; infundiu seu espírito no jovem Daniel; as falsas testemunhas ficaram convencidas da impostura; a inocência de Susana foi reconhecida; sua honra foi salva, assim como também sua vida; e seus caluniadores ficaram desonrados e foram sentenciados à morte (Dn 13). A confiança de Susana foi o que operou todas essas maravilhas.

Bem-aventurados são, portanto, todos aqueles que confiam em Deus, diz o Rei Profeta: Beati omnes qui confidunt in Eo (Sl 2, 13).

A confiança em Deus faz-nos invencíveis

Se pusermos constantemente nossos interesses nas mãos de Deus, não haverá demônio nem inimigo que nos possa derrubar, diz Santo Antônio. Muito bem conhecia este grande Santo a força da confiança em Deus; ele que tinha de sustentar tão frequentes e tão cruéis combates contra as legiões do Inferno (Vit. Patr.).

Com tua ajuda, Senhor, serei libertado da tentação: e ao lado de meu Deus, transporei toda muralha, diz o Salmista: In te eripiar a tentatione, et in Deo meo transgrediar murum (Sl 17, 30).

Olha que sou Eu aquele que te ordena, – diz o Senhor a Josué – tem bom ânimo e sê constante: não temas nem desanimes; porque contigo estará o Senhor teu Deus a qualquer parte para onde vás (Jos 1, 9).

O Senhor é Aquele que dá a morte e dá a vida, Aquele que conduz ao sepulcro e livra dele. O Senhor é quem empobrece e enriquece, o que abate e exalta (I Reg. II). Quando falte todo socorro humano, guardemo-nos de perder a esperança, porque então chega o socorro divino.

Lemos no livro de Judite que em todos os lugares aonde o povo de Deus chegava, ainda que não tivesse nem arco, nem flecha, nem escudo, nem espada, tornava-se vitorioso, porque o Céu combatia por ele, por causa da confiança que tinha em Deus (Jud 5, 16).

O justo, dizem os Provérbios, mantém-se de pé, firme como o leão, sem assustar-se de nada: Justus, quasi leo, confidens, absque terrore erit (Pr 28, 1). Com efeito:

1.° a confiança reta e inocente é valorosa, gera a liberdade e dá energia e fortaleza aos justos;
2.° a confiança dá tranquilidade à boa consciência, e não a deixa temer nada.
3.° Aquele que põe sua confiança em Deus, não teme senão o pecado. Assim, Santo Hilarião, segundo conta São Jerônimo, tendo sido detido por uns ladrões, perguntaram-lhe estes se tinha algum temor; e o piedoso solitário respondeu-lhes: “— Aquele que nada tem, não pode temer ladrões ”. “— Sim, porém, dois ladrões podem te matar!” “- É verdade, porém, precisamente por isso não os temo, porque estou pronto para morrer”.
4.° Os justos sabem que Deus cuida deles e que os leva em seu coração; apoiados Nele, nada temem; e
5.° Deus dá aos justos tanta força e confiança nas cosias difíceis e nos perigos, que se atrevem a empreender animosamente tudo o que é bom; e, assim, tornam-se terríveis para seus inimigos. Vede que heroísmo concedeu Deus aos Apóstolos, aos Mártires, a Santo Atanásio etc.

Pleno desta forte confiança em Deus, de Quem falamos, dizia São João, o Esmoler: “Ainda que todos os homens que habitem na terra se apresentassem, ao mesmo tempo, em Alexandria para pedir esmola, eu a daria a todos, porque nem o mundo inteiro poder esgotar os tesouros de Deus” (Leont. in ejus vita).

Deixai, pois, alma sem confiança, deixai de tentar a Deus com vossa pusilanimidade e vossa desconfiança. Quanto mais dava São João, o Esmoler, tanto mais recebia de Deus. Deus é a Fonte inesgotável; todo mundo tira água dela, e jamais deixa de correr com abundância para todo o mundo.

São Sisois, sacerdote, estava tão pleno de confiança em Deus, que, orando, certo dia, pela cura de seu discípulo Abraão que havia pecado por debilidade, dizia: “Deus meu, quer queirais ou não queirais, eu não vos deixo antes de que lhe tenhas curado… E obteve o que pedia” (Vita Patr.)

Faltando, no deserto, alimento para Santo Heleno e aos seus, exclamou o Santo pleno de confiança: Deus pode dispor aqui para nós uma mesa servida com abundância; e ao momento, segundo conta Paládio, um misterioso anjo trouxe-lhes tantos víveres quantos puderam consumir.

O Senhor está comigo como um guerreiro formidável, diz Jeremias: por isso, aqueles que me perseguem, cairão e ficarão sem forças; serão inteiramente confundidos (Jer 20, 11). Não percais vossa confiança que há de obter tão bela recompensa, diz São Paulo aos Hebreus: Nolite amittere confidentiam vestram, quae magnam habet remunerationem (Hb 10, 35). Aquele que ora, ore com fé, sem sombra de dúvida ou desconfiança, diz o Apóstolo São Tiago: Postulet in fide, nihil haesitans (Tg 1, 6). Aquilo que aguardais com confiança de Deus obtê-lo-eis infalivelmente, diz Santo Agostinho: Quod speras, hoc certo impetrabilis (In Psalm.).

É preciso que não depositemos nossa confiança senão em Deus

Maldito seja o homem que confia em outro homem, e não em Deus, e se apoia em um braço de carne, diz o Senhor por boca de Jeremias: Maledictus homo qui confidit in homine, etponit carnem brachium suum (Jer 17, 5). Será como o cardo que ignora os dias de abundância (Jer 17, 6).

O pecador que não tem confiança em Deus:

1.° não acerta o negócio de sua salvação;
2.° não produz nenhum bom fruto;
3.° está privado da doce chuva da graça e da sabedoria; vê-se abandonado de Deus.
4.° Converte-se em joguete do inferno em todas as circunstâncias, porém, sobretudo, na desgraça.

Deus deve ser o único refúgio, o único asilo do homem; Deus deleita-se em vir em auxílio e em manifestar seu poder e sua bondade infinita para com aqueles que, plenos de confiança, dirigem-se somente a Ele.

É preciso evitar com o maior cuidado a desconfiança para com Deus nas grandes provas, e não desesperar; é preciso nos munir de confiança: com ela estamos seguros do auxílio divino, o qual se manifesta até com milagres.

Isto é o que sucedeu a Ló rodeado dos infames sodomitas (Gn 19). Assim sucedeu a Moisés e aos Hebreus perseguidos pelos furiosos egípcios (Ex 14); a Davi, perseguido por Saul (I Reg. XXIII, 27); a Judite e à cidade de Betúlia sitiada por Holofernes; ao rei Ezequias quando ameaçado por Senaquerib (Is 38, 14); aos Macabeus, ao serem atacados por Antíoco.

Vendo Santa Clara que a cidade e o convento em que habitava iam cair em poder dos inimigos, apresentou-se sozinha e cheia de confiança sobre a muralha. Ali, diante dos sitiadores, dirigiu a Deus a oração do Real Profeta: Ne tradas bestiis animas confidentes tibi: Senhor, não entregueis em poder dessas feras as almas que Te confessam e adoram (Sl 72, 19). E, de repente, feridos de um pânico terrível, os inimigos escaparam e desapareceram.

A desconfiança vem da falta de fé; aquele que desconfia, não crê vivamente que Deus é onipotente, pleno de provisão e de bondade. A desconfiança vem também da esperança que depositamos nos homens e nas criaturas, como se tivessem mais poder e vontade que Deus para ajudar-nos.

Esta conduta é digna dos pagãos, e muito injuriosa a Deus: por isto Ele a castiga permitindo que as criaturas, nas quais temos confiado, abandonem-nos, enganem-nos, prejudiquem-nos e impeçam o bom êxito de tudo quanto desejamos. Por outro lado, Deus faz prosperar, sobretudo espiritualmente, aos que confiam Nele.

Considera, rogo-te, diz Elifaz a Jó, se jamais pereceu algum inocente, ou quando foi que aconteceu de os bons terem sido exterminados (Jó 4, 7).

Notas

  1. O PDF da edição desse livro em língua espanhola, feita em 4 volumes, pode ser encontrado em: https://archive.org/details/tesoros-de-cornelio-a-lapide-tomo-4 
  2. In omnibus tribulationem patimur, sed non angustiamur; aporiamur, sed non destituimur; persecutionem patimur, sed non derelinquimur; deicimur, sed non perimus (II Cor. IV, 8-9). 
  3. Fidelis Deus est: qui non patietur vos temptari supra in quod potestis; sed faciet etiam cum temptatione proventum utpossitis sustinere (I Cor. X, 13). 
  4. In prima mea defensione, nemo mihi adfuit, sed omnes me dereliquerunt… Dominus autem mihi adstitit, et confortavit me… (I Tim. IV, 16-17a 
  5. Ipse enim dixit: Non te deseram, neque derelinquam; ita ut confidenter dicamus Dominus mihi adiutor; non timebo quidfaciat mihi homo (Heb. XIII, 5-6). 
  6. Et factus est Dominus refugium pauperi, adiutor in oportunitatibus in tribulatione. Et sperent in te qui noverunt nomen tuum, quoniam non dereliquisti quaerentes te Domine (Psalm. IX, 10-11). 
  7. A dextris est mihi: ne commovear (XV, 8). 
  8. Constanter Deo crede, eique te totum committe; ita enim ipse te ad se sublevare non desinet, nihilque tibi evenire permittet,nisi quod tibi prosit, etiam si nescias (Lib. I Soliloq.). 
  9. A Dominum auspiciam, exspectabo Deum salvatorem meum, audiet me Deus meus (Miq. VII, 7). 
  10. Dominus illuminatio mea et salus mea: quem timebo? Dominus protector vitae meae: a quo trepidabo? (Psalm. XXVI, 1-2).