Extraído de uma edição de 1935 do livro “Na Luz Perpétua — Leituras religiosas da Vida dos Santos de Deus, para todos os dias do ano, apresentadas ao povo cristão” 1
Ocupamo-nos hoje de uma Santa, em cuja fronte não fulgura o diadema das virgens de Cristo, mas de uma santa penitente. Era Maria Madalena conhecida na cidade por pecadora, como afirma o Santo Evangelho, que relata a história da conversão dessa alma predileta de Deus. Dos espinhos da penitência brotou-lhe a rosa do amor. As lágrimas de arrependimento lavaram-lhe a veste maculada da alma.
“Veni, sponsa Christi!” Vem, ó esposa de Cristo! — é o cântico com que a Igreja entra hoje na festa de Santa Maria Madalena. Será possível que estas palavras se apliquem a uma pecadora? Será possível que uma pessoa nas condições de Maria Madalena possa merecer o qualificativo honroso de esposa de Cristo? A coroa da inocência, que perdera, foi substituída pela coroa do amor penitente. As graças abundantes que do Senhor recebeu, provam-nos o amor imenso que Deus tem à nossa alma.
Nas margens do lago de Genesaré havia, no tempo de Nosso Senhor, uma rica vivenda, chamada Magdala. Quer a tradição que aquela vivenda tenha sido a residência Maria Madalena, jovem descendente de família nobre e rica, dotada de qualidades invejáveis de corpo e espírito.
Órfã de tenra idade, bem cedo adquiriu uma certa independência, o que lhe foi perdição. Cortejada pelos jovens mais distintos, que lhe cobiçavam a grande fortuna, Madalena deixou-se arrastar para um terreno perigosíssimo, à vaidade, ao desejo de agradar. O resultado foi que, pouco a pouco, perdendo a prudente reserva e o recato próprio de uma donzela, deu ouvidos à voz sedutora da paixão. Na ambição de ser rainha dos corações, chegou a ser escrava do pecado.
Anos se passaram. Madalena sorvera o cálice do prazer até ao fundo, quando, um dia, o coração se lhe sentiu tocado pela graça divina.
Quis a Providência divina, como por acaso, que o olhar se lhe cruzasse com o olhar sereno e majestoso do Divino Mestre. Pela primeira vez lhe veio a compreensão de que outra coisa, que não a sensualidade, era capaz de ferir o coração humano: o amor divino. Bastou um olhar de Jesus Cristo para dissipar as nuvens do pecado, que ofuscavam o espírito da pobre pecadora; bastou um olhar de Jesus, para fazer derreter-lhe o gelo do coração.
Foi uma circunstância singular que trouxe Madalena aos pés de Jesus. A conversão efetuou-se durante um banquete. Assim o tinha determinado a Providência Divina. Aquela, cujo pecado tinha sido público, devia prestar reparação pública. Escrava da sensualidade, por ocasião de um grande banquete devia derramar lágrimas de penitência. Com santa impaciência o divino Pastor tinha esperado a volta da ovelha perdida. Se aceitara o convite do fariseu para o banquete, era com a esperança de encontrar aquela ovelha.
Reunidos os convivas, em meio do banquete aparece a figura da pecadora. Nas mãos trêmulas segura um vaso de alabastro, com unguentos preciosos para, segundo o costume do país, ungir a testa e o cabelo dos que jaziam à mesa. A rica cabeleira cai-lhe desordenadamente sobre as espáduas, e o belo rosto traz-lhe estampadas a tristeza e a confusão.
O fariseu, vendo-a entrar, finge não ligar importância ao fato. Para ele, Madalena é uma decaída, objeto de desprezo. Que não se atrevesse a chegar perto, para ungir-lhe a cabeça!
Eis que a pobre mulher se aproxima do Cordeiro de Deus. Estupefação geral! Mas o olhar da pecadora não ousa enfrentar a luz do Sol divino. “Retro”, diz o Evangelho, — de costas se chega aos pés do divino Salvador.
Pouco se lhe dá que a persigam olhares malévolos e a firam censuras sarcásticas. Uma só coisa quer, uma ideia a ocupa: obter o perdão d’Aquele que veio trazer a salvação.
Ei-la, de joelhos, perante o Senhor da vida e da morte; ei-la na presença do juiz. Palavra nenhuma os lábios lhe articulam. A dor embarga-lhe a voz. Dos olhos lhe jorra a fonte amarga da penitência. Se viera para ungir a seu Deus e Senhor, as lágrimas pressurosas estão a substituir o nardo precioso. E assim, prostrada aos pés do Mestre, não mais as retém, orvalhando-os abundantemente com a linfa preciosa do arrependimento. Não era o que queria; não era essa sua intenção; mas não mais possível lhe é abafar o fogo, que lhe invade o peito; não mais resiste ao calor abrasador, que lhe arde no coração. Não tem palavra para dizer o que lhe vai na alma. Mais eloquentes são as lágrimas, que gotejam sobre os pés de Jesus. Grande silêncio fez-se na sala, interrompido somente pelos discretos soluços da mulher.
No meio da dor que lhe dilacera o coração, como se sente bem! Oprimida pelo peso dos crimes, sabe que está aos pés d’Aquele que é a Caridade. O único olhar que teve a felicidade de receber, dos olhos do Filho do homem, disse-lhe que está aberta a porta do perdão a todos, — também a ela o está.
Entre os convivas corre um malicioso cochichar: “Se este fosse profeta, deveria saber quem é essa mulher, e não permitir que o tocasse”. Têm eles razão, e quem de nós, em seu lugar, teria formado conceito contrário? Mas Jesus Cristo assim não pensa.
Vendo os pensamentos dos fariseus, disse a Simão: Um credor tinha dois devedores; um devia-lhe quinhentos dinheiros e o outro cinquenta. Como não tivessem com que lhe pagar, perdoou-lhes a dívida a ambos. Qual dos dois lhe ficará querendo mais bem? Simão respondeu: “Penso que é aquele a quem perdoou maior soma”. Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. E voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para lavar os pés; ela os regou com as lágrimas e enxugou com os cabelos. Não me deste o ósculo da boa vinda; e ela não cessou, desde que entrou aqui, de beijar-me os pés. Tu não me derramaste óleo perfumado na cabeça; ela me ungiu os pés com perfumes. Por isso te declaro: Muitos pecados lhe são perdoados, porque ela amou muito. Pois ama menos a quem menos se perdoa”. Silenciosa, tinha ouvido essas palavras a pecadora. De joelhos, os olhos ainda embaciados de chorar, tímidos e confiantes, procuraram o rosto do Senhor. O coração diz-lhe que já achou o perdão; sente pousar sobre o olhar da caridade, que purifica, perdoa e eleva.
Como lhe jubila o coração, quando o Bom Pastor se lhe dirige, com palavras doces como mel: “Teus pecados estão perdoados. Tua fé te salvou; vai em paz”.
Ela se levanta e, silenciosa como viera, se retira. Não é mais pecadora. Perdoada, santificada, inteiramente transformada a alma de Madalena nada em felicidade, abrasada de amor divino, de um amor forte, durável e eterno.
No monte Calvário encontramos a santa penitente, entre as almas eleitas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Surda aos gritos blasfemos de uma multidão sacrílega, indiferente aos motejos sarcásticos e injuriosos, a atenção concentra-se-lhe toda na vítima, que na cruz se oferece ao eterno Pai, em expiação dos pecados do mundo. Com o mesmo ardor com que na mocidade se entregava aos paroxismos da paixão, que a devorava, sem que se deixasse incomodar pela crítica, que a censurava e invectivava, assim na hora suprema do sacrifício sanguinolento, no Gólgota, a vemos ao pé da cruz, com a fidelidade inquebrantável, entregue ao amor divino.
Esse mesmo amor, na madrugada da Páscoa, a levou ao túmulo do querido Mestre, para receber recompensa superabundante. Tendo achado vazio o sepulcro, lá se deixou ficar, debulhada em lágrimas. Assim chorando, se debruçou sobre a sepultura. Aí viu dois anjos, vestidos de branco, assentados em lugar do corpo, um à cabeceira, outro aos pés. Eles lhe disseram: “Mulher, por que choras?” Ela respondeu: “Porque tiraram meu Senhor e não sei onde o puseram”. Então se voltou e viu Jesus em pé, mas sem o reconhecer. Ouviu de Jesus: “Mulher, por que choras?” Ela, pensando que fosse o jardineiro com quem estava falando, disse-lhe: “Senhor, se fostes vós quem o tirou, dizei-me onde o pusestes e irei buscá-lo”. Jesus disse-lhe: “Maria!” Ela se virou e respondeu: “Rabôni!” (isto é, Mestre!)
Essa única palavra, “Maria”, foi o bastante para tirar-lhe o véu dos olhos. “Maria!” — nome que, pronunciado por Nosso Senhor, despertou na alma de Madalena uma longa série de reminiscências.
O nome de Maria, falado naquela ocasião por Jesus Cristo, era a expressão sintética de uma história, de uma vida inteira. Dizendo “Maria”, Jesus Cristo exprimira tudo que se tinha passado, entre ele e a penitente.
Na casa de Simão fora o juiz, que a tratara de mulher, dizendo-lhe: “Mulher, vai em paz. Teus pecados estão perdoados”. No dia da Ressurreição, Madalena, ouvindo seu nome de Maria, pronunciado pelo Salvador ressuscitado, reconhece a voz do Pai.
Desde aquele dia, o nome de Maria Madalena, da santa penitente de Magdala, Apóstola dos Apóstolos, é pronunciado com respeito pela leitura do Evangelho da Ressurreição.
O santo Evangelho nada mais diz de Maria Madalena. É provável que tivesse estado presente à grandiosa manifestação do Divino Espírito Santo, no dia de Pentecostes. Igualmente é de supor que, junto com os santos Apóstolos e Maria Santíssima, tenha assistido à Ascensão de Nosso Senhor.
Um escritor grego, referindo-se à Maria Madalena, afirma que a mesma, depois da Ascensão de Nosso Senhor, se mudou com Maria Santíssima e São João Evangelista, para Éfeso, onde teria morrido santamente.
Há uma outra lenda, segundo a qual a família de Lázaro, isto é, Lázaro, Marta e Maria Madalena, para evitar as perseguições que os judeus lhes faziam, teriam fugido da Palestina e fixado residência em Marselha. Diz a mesma lenda que Maria Madalena teria vivido mais trinta anos, depois da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo e passado esse tempo todo numa gruta, onde se entregara à prática de penitências as mais austeras. Seja como for, o certo é que Maria Madalena, Rainha das almas penitentes, entre as santas mulheres, exceto Maria Santíssima, é a mais venerada pelo povo cristão, graças ao seu grande amor a Deus e extraordinária penitência.
Reflexões
Em Maria Madalena temos o exemplo de como uma grande pecadora se converte, tornando-se grande Santa. À mão deste exemplo, os pecadores devem convencer-se de que a grandeza e o número dos pecados não é motivo para se entregarem ao desânimo, ao desespero. Como Maria Madalena, também poderão alcançar o perdão das faltas, desde que, semelhantes à grande Santa Penitente, se resolvam a fazer penitência. O início da conversão de Maria Madalena foi a audição da palavra de Deus. Há muitos, que permanecem nos pecados, porque fogem da palavra divina.
Grande foi a mortificação, a que Maria Madalena se sujeitou, quando na presença de muitas pessoas, prostradas aos pés do Divino Mestre, fez a confissão pública. Da mesma forma deve o pecador humilhar-se, caso queira praticar a penitência e obter perdão dos pecados. Deus não lhe exige confissão pública, mas a declaração dos pecados ao sacerdote, no tribunal da penitência. Lembre-se o penitente de que é mais fácil aceitar a humilhação da confissão, do que sofrer penas eternas no fogo do inferno. — Maria Madalena não pediu outra coisa, senão o perdão dos pecados. Muitos se aproximaram de Nosso Senhor, para pedir-lhe alívio nas aflições. “Mas esta, — diz São João Crisóstomo, — pediu a saúde da alma, a libertação das cadeias do pecado e foi atendida imediatamente”. É um aviso para nós, que antes de tudo devemos procurar o bem da nossa alma e pedir a Deus as graças necessárias para salvá-la.
Santos do Martirológio Romano, cuja memória é celebrada hoje:
Em Filipos a memória de Santa Síntique, discípula do apóstolo São Paulo.
Em Lisboa São Lourenço de Brindisi, Superior geral da Ordem dos Capuchinhos, e um dos mais ilustres filhos de São Francisco. Dotado de belos talentos, fez extensos estudos e ocupou sucessivamente os mais altos postos na sua Ordem. Desta maneira teve ocasião de conhecer quase todos os países da Europa. Seus serviços foram reclamados para trabalhos importantes da diplomacia. A salvação da Europa do poder dos turcos é de grande parte o merecimento de sua atividade e de sua oração. Por último foi embaixador da Alemanha junto ao governo da Espanha. 1619.
Notas
- PDF desse livro disponível em: https://archive.org/details/pe-joao-baptista-lehmann-na-luz-perpetua-vol-ii ↩